Rio Grande do Norte, quinta-feira, 28 de março de 2024

Carta Potiguar - uma alternativa crítica

publicado em 7 de outubro de 2012

A imperdoável cegueira historiográfica da Veja

postado por Carta Potiguar

Por Diego Fernandes,

(Mestrando em História pela UFRN)

Mais uma vez, a revista Veja comprovou aquilo que todo estudante de história já ouviu: o caráter rasteiro e ideológico de sua produção jornalística. O semanário da Abril recentemente deu mais um motivo para fortalecer a comum aversão que muitos historiadores, e outros estudiosos das ciências humanas, nutrem a seu respeito. Trata-se da “análise” veiculada pela Veja sobre o historiador Eric Hobsbawm (1917-2012), em razão do seu recente falecimento. Reduzido a um “idiota moral” (sic), o autor de A Era dos Extremos (1994) é caricaturado pela Veja como um historiador cego pelo véu da ideologia marxista. Na visão da revista, Hobsbawm foi alguém que se deixou contaminar pela “cegueira vermelha” do marxismo, assim aponta o autor da matéria.

Em vez de examinar e refletir sobre a vasta e importantíssima obra historiográfica do autor, suas repercussões teóricas e políticas, a Veja opta conscientemente e – por que não? – ideologicamente por acusá-lo, denunciando-o pelo crime que os historiadores ditos metódicos do século XIX mais temiam, a saber: a parcialidade do cientista. É a partir do mito da objetividade, da história descarnada das opções políticas, como diria um outro grande historiador, Lucien Febvre (1878-1956), que a Veja se levanta para esmagar a obra de um historiador cujo trabalho e talento tanto contribuíram para a historiografia dos últimos 40 anos.

O julgamento inquisidor da Veja contra Eric Hobsbawm não mostra apenas a dimensão ideologizante da revista, mas escancara para os leitores o completo desconhecimento da mesma acerca da historiografia a qual o historiador inglês esteve vinculado, assim como suas contribuições.

É lamentável e vexatório que a revista Veja, que diz ter um compromisso com a qualidade jornalística e respeito pelo leitor, desconheça ou omita a contribuição inegável do historiador britânico para a historiografia e para a própria compreensão do Ocidente sobre os séculos XIX e XX.

Ao lado de Christopher Hill, Rodney Hilton, Edward Palmer Thompson e Perry Anderson, companheiros da famosa New Left Review, Hobsbawm participou ativamente do movimento historiográfico cunhado pelo slogan history from below, definido por uma concepção de história orientada e preocupada com os excluídos e os marginalizados da História; a massa anônima que até então era renegada ao silêncio por uma historiografia mais oficial, que somente dava voz e visibilidade aos “grandes homens” e aos “grandes feitos”. Seu trabalho Os bandidos, de 1969, se insere neste contexto de renovação da historiografia inglesa, bem como seu livro sobre a história social do Jazz, escrito em 1959, como uma proposta de “jornalismo histórico”.

A preocupação com a cultura popular, a atenção dada à teoria da história e o anseio de escrever uma história pra além dos compactos muros da universidade, materializados não só na famosa tetralogia das “Eras” (A Era das Revoluções [1962], A Era do Capital [1975], A Era dos Impérios [1987] e A Era dos Extremos [1994]) mas também em livros igualmente importantes como A Invenção das Tradições (1983) e Nações e Nacionalismos (1991), são outros contributos indispensáveis de Eric Hobsbawm a serem mencionados.

Um historiador honrado e congratulado pelas principais instituições acadêmicas em todo o mundo mereceria, no mínimo, uma análise atenta à pluralidade e importância de sua obra no contexto em que ela foi gestada e produzida. A Veja não respeitou o homem que é tido pela comunidade dos historiadores com um dos grandes intelectuais do “breve século XX”, como gostava de dizer o próprio Eric Hobsbawm.

A maior parte dos homens, intelectuais ou não, somente desfrutam de alguma honraria e reconhecimento após a morte. Hobsbawn, por sua vez, graças ao seu talento e rigor, foi prestigiado e reconhecido em vida. A Veja, no entanto, reduzindo-o a um mero propagador de ideias políticas, a um fanático confessional marxista, tenta infamar e macular o prestígio e o reconhecimento que o historiador obteve e desfrutou em sua vida. Uma vida, aliás, dedicada à história.

Nesse sentido, reforço aqui a reposta de repúdio dada pela Associação Nacional dos Historiadores à matéria da Veja  (Aqui).

 

Carta Potiguar

Conselho Editorial

10 Responses

  1. MarxSantos disse:

    A veja está fazendo o papel dela. Num ambiente livre e democrático, a imprensa pode se ter posições e defendê-las da forma como lhes convir. Só imprensa livre e população letrada, consciente, controla a própria imprensa. Ps. Discordo, inteiramente, do conteúdo publicado por veja, mas defendo que ela possa fazer isso.

  2. Diego César disse:

    Fiz filosofia na UFRN e tive um professor, chamado Abraão, que sempre falava e usava textos do Eric Hobsbawm em suas aulas. Detalhe: Abraão não era marxista. acho essa informação pertinente, pois parece ser uma característica daquele historiador ser lido por marxistas e não-marxistas. sem dúvida, foi um puta historiador.

  3. Lucas disse:

    o problema nao esta em veja publicar o que ela quiser, é direito dela fazer isso, assim como a carta potiguar tambem o faz, a maioria do autores aqui expressa a opiniao particular, qual o mal nisso, mal faz em voce ler a veja sabendo da tendencia dela, pare de ler a veja e ficar se remoendo com os absurdos escritos la, é facil assim.

  4. Ótimo texto, Diego.
    A (não-) VEJA, como sempre, reduzindo e mediocrizando em seus escritos. No mínimo, uma falta de respeito com todo historiador (e não apenas historiadores, reconhecendo o alcance dos trabalhos de E. Hobsbawm!). Faça minhas as palavras da ANPUH em resposta à reportagem da VEJA:”Talvez Veja, tão empobrecida em sua análise, imagine o mundo separado em coerências absolutas: o bem e o mal. E se assim for, poderá ser ela, Veja, lembrada como de fato é: medíocre, pequena e mal intencionada.”

  5. Biguilho disse:

    Não me surpreende, vai esperar o que da veja?!

  6. Excelente texto, parabéns Diego.

    É no mínimo irritante ver o texto da veja e boa parte dos comentários que estão embaixo…

    Como Maiara e Biguilho disseram abaixo, a Veja só comprova o que esperavamos dela. Um discurso marcadamente ideológico e cheio de intencionalidades das mais podres.

  7. Gustavo disse:

    Era de se esperar. A veja outro dia chutou o cadáver de Saramago só pelo fato deste ser comunista.

    Em 2007 a revista fez uma matéria totalmente sem ética e escrúpulo contra Che Guevara que foi totalmente desmoralizada pelo biografo oficial do médico argentino John Lee Anderson.

    Não sei como é que ainda não exumaram os restos mortais de Luis Carlos Prestes p/ chuta-lo. Talvez com medo da família do mesmo processa-la com força e leva-la a falência, já que os filhos e viúva do mesmo defendem com unhas e dentes a biografia do militar comunista.

  8. Francisca Silva disse:

    A Veja não respeita ninguém e ainda é cheia de covardes. Por que o autor do texto que ataca Hobsbawm não assinou seu próprio trabaho? Sabe que falou besteira, por certo.

    Parabéns pelo estudante que teve competência intelectual e coragem para se mostrar publicamente.

  9. Bruce Torres disse:

    Comentário que enviei à revista e que não foi publicado por motivos óbvios:

    “O problema, senhores, é que a matéria comete um erro grave: dizer que
    Hobsbawm aceitou os genocídios e crimes perpetrados pela União
    Soviética. Em ‘A Era dos Extremos’, o próprio Hobsbawm diz que o número
    de mortos deveria ser calculado em oito dígitos, não mais em sete, como
    faziam os mais conservadores. Nesse mesmo livro ele diz que não espera
    que as pessoas aprovem isso, mas que isso não se repita. Em ‘Como Mudar o
    Mundo’, ele mesmo critica os intelectuais de esquerda – incluindo ele –
    por terem ficado calados em relação aos crimes perpetrados pelos
    regimes comunistas. Logo, mil perdões, mas cabe revisão dessa matéria.
    Aos que acham que eu sou marxista/comunista, por favor, não venham com
    reducionismos. Procurem vocês mesmos essas afirmações de Hobsbawm nos
    livros que citei.”

  10. Silva disse:

    Pois é:

    “Uma revista pode publicar o que quiser, é direito dela.”

    Assim como é direito DELA ser dona de um PARTIDO POLÍTICO e de um BANCO…

    Por conseguinte, é direito dela espalhar mentiras e calúnias para influenciar a opinião pública de uma nação inteira e conseguir votos para os seus candidatos (que defendem e implementam os seus planos de poder).

    Afinal, democracia é isso.

    É o poder financeiro casado com o poder midiático controlando uma manada subserviente…

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